Desde que publicava no Alienrique que tenho de desejo escrever resenhas de livros, dizer o que gosto ou não gosto nos filhos dos escritores (publicados ou não, por editoras ou independentes). Pra estrear a categoria, trago pra vocês o livro que dará origem ao próximo filme estrelado por Daniel Radcliffe (isso, o eterno Harry Potter): “Horns”. Ou “O Pacto”, em português. É, né.
Ignatius Perrish sempre foi um homem bom. Tinha uma família unida e privilegiada, um irmão que era seu grande companheiro, um amigo inseparável e, muito cedo, conheceu Merrin, o amor de sua vida.
Até que uma tragédia põe fim a toda essa felicidade: Merrin é estuprada e morta e ele passa a ser o principal suspeito. Embora não haja evidências que o incriminem, também não há nada que prove sua inocência. Todos na cidade acreditam que ele é um monstro.
Um ano depois, Ig acorda de uma bebedeira com uma dor de cabeça infernal e chifres crescendo em suas têmporas. Descobre também algo assustador: ao vê-lo, as pessoas não reagem com espanto e horror, como seria de esperar. Em vez disso, entram numa espécie de transe e revelam seus pecados mais inconfessáveis.
Um médico, o padre, seus pais e até sua querida avó, ninguém está imune a Ig. E todos estão contra ele. Porém, a mais dolorosa das confissões é a de seu irmão, que sempre soube quem era o assassino de Merrin, mas não podia contar a verdade. Até agora.
Sozinho, sem ter aonde ir ou a quem recorrer, Ig vai descobrir que, quando as pessoas que você ama lhe viram as costas e sua vida se torna um inferno, ser o diabo não é tão mau assim.
Não foi difícil viciar na obscuridade inteligente de Joe Hill, que conseguiu me fazer acordar de uma bebedeira louca com Ig, sentindo todos os efeitos massacrantes do álcool, e encontrar na testa um par de chifres diabólicos. O autor tem essa técnica onde todas as personagens possuem trejeitos e características essenciais para que ganhem vida própria usando nosso corpo pra manifestar emoções como pena, revolta, prazer ou tristeza.
Seu trabalho descritivo, seja de cenas ou das “vidas” dentro da história, são de uma falsa simplicidade de encher os olhos. Falsa porque, mesmo parecendo uma sucessão de apontamentos e explicações objetivas acerca dos locais (muito bem esquematizados), por exemplo, é de um trabalho de lapidação absurdo, saber a ordem do que é dito, transmitir a visão mais singular do que ele imaginou sem deixar de oferecer ao nosso cérebro o poder de imaginar em cima disso. E acho que autores desse nível estão cada vez mais raros (ou com histórias mais, hmm, ruins).
O livro é uma caixinha de sadismo pra levar na mochila. Temos um protagonista que aos poucos se torna o próprio Diabo (mesmo que sua índole esteja mais para uma criança inocentemente alcoólatra) num mundo que poderia muito bem ser o inferno, já que os próprios humanos atuam como demônios de primeira linha, cruéis, mentirosos, sujos, babando pecados pelas ventas. Trabalhar no conceito de que todo mundo na história é suscetível aos poderes dos chifres e dão a falar sobre seus segredos mais cabeludos para Ig é uma clara ironia de que o ser humano é um amontoado caótico de carne e desconceitos: até o Diabo duvida do que eles podem fazer.
E mesmo que a história parta do princípio de como ele conseguiu um par de chifres depois de uma noite chumbada, o desenrolar é desesperador quando você entende que a resposta pra isso é subjetiva, quase poética. Isso mata bastante a expectativa. Só não destrói o final ou desmerece o trabalho técnico de fechamento (e a criatividade invejável) de Joe Hill em “Horns” (falando nisso, acho que o título em português não foi feliz).
Como dito na sinopse, Ig descobre a partir de seu irmão quem é o verdadeiro assassino de Merrin, sua namorada. E 60% de minha admiração por Joe Hill ficou colada com Superbonder na capa do livro quando ele nos presenteou com o nascimento de um sociopata que pode ser colocado na prateleira como uma obra-prima. Quando, então, ele é inserido na história (e nós já sabemos quem ele é), é na leitura dos trejeitos que falei no começo que você acredita sem questionamentos que estamos falando de um assassino frio e apático que se esconde nos véus da sociedade pra saciar desejos esquisitinhos. Fica até difícil não ligar pra polícia e dizer “prendam Joe Hill!”, pois seu estudo de comportamento psicológico pra montar o assassino é tão completo que a gente suspeita que o próprio autor se colocou na obra como o grande vilão (porque o Diabo é o menor dos problemas!).
Pra finalizar, o cheiro de cigarro e álcool fica impregnado na sua camisa de [insira aqui o nome da sua banda de rock clássico preferida]. As inspirações puxadas do gênero musical deixam que o livro se torne pop sem a futilidade da literatura popular atual. Fica descolado, com ritmo e, cara, soma respeito. É legal ver os roqueiros da cidadezinha americana fazendo merda na rua, com fama de malucos, e acordar ao lado de Ig com ressaca e dor de cabeça. Diabo, inferno, rock e literatura: deuses, como eu amo o século XXI!
A capa é legal (tem tudo a ver com a história, você vai entender) com arranhões, o nome do autor e o título em acabamento envernizado; a diagramação é simples (a escolha da fonte para os capítulos não foi tão legal, por outro lado) e a qualidade do papel se destaca (coisa da Sextante, adoro).
É pra quem curte histórias de assassinatos com só um toquezinho de sobrenatural, já que o tema não é levado a fundo. É só um diferencial bem medido e responsável por realizar as dezenas de piadas comparativas entre o Diabo e o homem: quem é perigoso, afinal? Quem manda, quem obedece? E até o papel do Capiroto como auxiliar mão-direita de Deus, o pai irritadíssimo e irresponsável.
Aqui um vídeo com o Joe falando do livro. Tá legendado em português
Sobre o filme, você pode ver a foto de Daniel Radcliffe como Ignatius Perrish aqui. Não recomendo ver a foto até terminar o livro, porque tenho certeza que a imagem que Joe Hill quis passar de Ig não é a mesma que o cinema vai tentar vender o filme. Não tô reclamando, já que compreendo que são duas mídias diferentes, o cinema da literatura, mas como leitor, acho que vai limitar muito sua percepção visual da personagem. Sei lá, sugestão.